Imagine se o carro o deixasse na porta do shopping ou restaurante e o apanhasse de volta. Para quem circula com chofer, taxi ou usa serviço de manobrista, não há nada de novo na ideia. A diferença, no caso, é um automóvel que vai e volta sozinho, acionado num simples toque no celular. No modelo de mobilidade projetado pela indústria japonesa, no futuro ninguém mais sofrerá dando voltas na garagem do shopping. Por meio de comandos, o próprio carro se encarregará de encontrar uma vaga.
A conectividade do automóvel passou a ocupar mais espaço nos projetos dos fabricantes de carros. Daqui para a frente, os desenhistas e engenheiros da indústria automobilística terão, cada vez mais, que cuidar não apenas da concepção do veículo como também participar do planejamento das moradias, garagens, rodovias e cidades.
O debate muda o formato das feiras de automóveis. No Tóquio Motor Show, que será aberto ao público amanhã, o carro mantém-se como protagonista, mas o espaço não é mais só seu. Na 42ª edição, o salão inclui proposta de moradia e de estacionamentos. Duas montadoras - Mitsubishi e Nissan - ousaram entrar no setor de construção, arquitetura e até decoração ao apresentar conceitos de casas que interagem com o automóvel.
Nessa mudança de paradigmas, até a garagem pode ser eliminada. Depois de passar mais de 100 anos do lado de fora da casa, o veículo ganha permissão para estacionar próximo ao sofá ou do equipamento de vídeo, aproveitando alguma tomada para recarregar baterias. No salão de Tóquio, a Mitsubishi colocou seu elétrico i-Miev na sala de estar de uma casa. Nesse caso, ninguém poderá dizer que não quer o carro dentro de casa porque faz fumaça ou barulho.
No caso dos veículos que podem sair em busca de vaga para estacionar, Toyota e Nissan apresentam no salão de Tóquio um conceito que funciona por meio da conexão de automóvel elétrico com o celular. O sistema emite sinal para o veículo ir até o escritório buscar o dono ou sair em busca de uma vaga disponível para estacionamento. No caso, a recarga de baterias na vaga do estacionamento seria wireless, já que não haveria ninguém para acionar o equipamento. A tecnologia de recarga wirelesse já está sendo pesquisada pelas montadoras japonesas.
A posição do assento do condutor, outro paradigma, também começa a mudar. No Pivo 3, o carro conceito da Nissan que estaciona sem motorista, traz o banco no meio. Por se tratar de um modelo super compacto e estreito não há motivos para deixar o motorista no lado esquerdo ou direito. No centro, ele ganha visibilidade. O Pivo traz a opção de acomodar um passageiro no banco traseiro. Também no centro do veículo.
A mudança de conceitos inclui o local da mostra japonesa que acontece a cada dois anos. Este ano, a exposição foi transferida para o Big Sight, nova área erguida sobre um enorme aterro na baía da capital do Japão. Sem espaço para ampliar construções como essa, os japoneses têm recorrido aos aterros. É numa área assim que foi construído o novo aeroporto de Nagoya.
Os equipamentos de assistência ao carro em movimento são outra tendência. A Mercedes-Benz, que já investe nesses equipamentos nos carros em produção, mostra em Tóquio as vantagens do sistema que serve para alinhar o veículo na faixa caso o motorista desvie sem querer.
Assumir novos papéis na sociedade significa que o carro perdeu o antigo apelo de ser objeto de desejo e de emoção?
Há também sensores que auxiliam nos chamados pontos cegos, emitindo um alerta sonoro e um sistema que reduz a pressão no pedal do acelerador no caso de aproximação de outro carro ou mesmo um pedestre.
O salão de Tóquio indica que a crescente conectividade está transformando o perfil da rede de fornecedores da indústria automobilística. Além das novas iniciativas dos tradicionais, como a Bridgestone, que ontem apresentou seu pneu sem ar, várias empresas até aqui alheias ao processo de produção de veículos, se espalham pelo salão de Tóquio. É o caso de companhias de tecnologia da informação, eletrônicos, painéis de energia solar e soluções para moradias.
Os japoneses estão praticamente sozinhos em sua feira. A exceção é para os seis tradicionais grupos europeus - Mercedes, Volkswagen, BMW, PSA Peugeot Citroën, Renault (parceira da Nissan) e Jaguar, que mantêm discrição, tanto na feira como no mercado japonês. A presença coreana, com a Hyundai, limita-se ao segmento de caminhões, no qual as marcas japonesas não são muito atuantes.
Não há nenhum espaço para as marcas chinesas. A indústria japonesa sinaliza que pretende manter-se sozinha, seja para resolver seus problemas imediatos, como a valorização do iene, ou discutir o carro do futuro.
No salão de Tóquio começam a aparecer também novas versões de elétricos, indicando a tendência de esse segmento se voltar para os pequenos utilitários e até modelos esportivos. A Honda mostra um conceito de elétrico esportivo, o EV-Ster, e anunciou para setembro de 2012 o início de venda do modelo Fit elétrico no Japão e, em seguida, nos Estados Unidos.
Apesar da mobilização de parte da indústria para que o governo brasileiro dê incentivos para os elétricos, o Brasil não aparece nas prioridades de lançamentos desse modelo. O presidente da Renault-Nissan, Carlos Ghosn, diz que os emergentes ficarão para uma fase posterior, exceto China, que incentiva o uso dessa energia. Durante entrevista no salão, o executivo brincou com as informações que circularam sobre a conversa que teria tido com Dilma Rousseff em outubro. "Eu não fui até a senhora Rousseff vender carros; fui apresentar nosso novo plano de investimentos no Brasil. Mas como me consideram um promotor do carro elétrico acabaram achando que eu visitei a presidente para isso."
No salão, uma área equivalente a quase a metade do espaço dos estandes dos carros abriga a chamada "Smart City". É nesse espaço que se discute a interação do automóvel com o meio urbano. Afinal, um sistema como o do carro que busca uma vaga sem o condutor não poderá existir se as vias públicas não estiverem também conectadas.
É na Smart City que também se mostram soluções ambientais e o desenvolvimento de produtos agrícolas alternativos. A Toyota lança o conceito de vaga de estacionamento onde o piso de concreto é substituído por vegetação, na tentativa de diminuir o calor.
A Toyota também testa o uso do etanol de celulose e colocou na Smart City dois resultados da parceria com a Yamaha: uma bicicleta e um triciclo elétricos, que podem ser recarregados com o mesmo equipamento usado em pontos de recarga de carros. A montadora está lançando no mercado japonês a nova versão do híbrido Prius com teto adaptado para armazenar energia solar. A ideia é usar essa energia para diminuir a temperatura do interior do veículo parado na rua e, assim, evitar o uso excessivo do ar-condicionado quando o motorista entrar no veículo.
Na Smart City haverá, até o salão terminar, no dia 11, uma série de debates sobre mobilidade, com especialistas. Novas ideias podem ainda surgir, já que todos os fabricantes estão sendo pressionados pelos governos e sociedade para ajudar a reduzir o ritmo do aquecimento global.
Na sua apresentação no salão, Ghosn foi enfático ao dizer que o fabricante de carros não pode mais continuar nos "exercícios de fantasia de design", Mas em seu discurso, Akio Toyoda, presidente da Toyota, saiu em defesa do apelo que mais ajudou a indústria a ganhar dinheiro: o prazer de dirigir.
Toyoda admitiu que o jovem de hoje perdeu um pouco do interesse pelo automóvel. A maior montadora do Japão pretende, no entanto, resgatar essa emoção. Por isso, adotou uma adaptação de slogan que criou na década de 80: "Fun to drive" (prazer em dirigir). O novo diz "Fun to drive again".
Em parte, o novo lema pode se referir também ao desejo de recuperação de auto-estima de uma empresa que passou por dura fase de sucessivos recalls. Seja como for, Toyoda indica que o novo slogan pode ajudar a atrair os jovens e também não perder consumidores do passado. "Se não proporcionar diversão, então, não é um carro", disse. "Eu espero que esse tipo de automóvel nunca desapareça".
O grande problemas da perda de competitividade no exterior, em decorrência da valorização cambial, é um obstáculo. Mas ainda na posição de terceiro maior produtor de veículos do mundo, o Japão luta para não perder espaço na história dessa indústria e quer ter a certeza de estar na frente quando todos os novos papéis do automóvel estiverem definidos.
Por Marli Olmos | De Tóquio
Fonte: Valor Online - 2/12/11