January 14, 2013

Oito décadas de café

# Após 79 anos de dedicação à praça cafeeira santista e viagens pelo Brasil e exterior, o incansável Saul Eliezer Neto, aos 94 anos, decide parar

MARCELO SANTOS
DA REDAÇÃO

Última quinta-feira de 1929, um dia 24. No final da manhã, o pânico domina o semblante dos nova-iorquinos em Wall Street. A queda brusca da bolsa (que voltaria a despencar na segunda e terça seguintes) encerrava a até então década dourada do mercado de ações americano. O Brasil não ficou imune. Em Santos, a praça cafeeira foi fulminada e a quebradeira destruiu fortunas. Chegava ao fim a era dos barões de café.

Naquela época, Saul Eliezer Neto era um menino de 10 anos. Sentiu na pele a quebra da bolsa. O pai, um imigrante libanês que chegou ao Brasil em 1914 para escapar da guerra, tinha se tornado um bem-sucedido comerciante de roupas e tecidos na Avenida Conselheiro Nébias. Para azar dele, sua clientela vinha toda do mercado de café.

“De repente, os barões de café quebraram e meu pai foi à falência. Eram 400 contos de réis em mercadorias a prazo e ninguém pagou”, conta Saul. Até a casa da família teve que ser hipotecada.

Curiosamente, a própria quebra do setor cafeeiro definiu o futuro profissional de Saul. O pai, um negociante nato, acabou migrando para o café quando esse mercado melhorou. E Saul, após a adolescência, seguiu os passos e não mais mudou de rumo. Agora, aos 94 anos, ele tomou uma dura decisão – parar de trabalhar. “Foram 77 anos de trabalho ininterruptos com o café, além dos últimos dois anos em casa.

Em 2009, aos 75 anos de atuação no setor, recebeu homenagem na Câmara de Santos e uma faixa atravessando o calçadão da Rua XV. Muitos pensavam que ele finalmente iria parar. Mas se enganaram.

Saul tem problemas de audição, sequela de um derrame de alguns anos atrás. Mas isso não o impediu de continuar na ativa até novembro último. Apaixonado pela tecnologia, contraria a percepção geral de que os mais velhos não têm habilidade com o computador. “Não faço milagre no computador, mas arroz e feijão eu faço”. É comum, por exemplo, trocar e-mails com a filha Andréa.

“Após o derrame, o médico me pôs 30 dias em repouso. Perdi contatos aqui e no interior. Assim mesmo, consegui fazer negócios, mas decidi parar. Em novembro, liquidei o último contrato”, afirma ele.

Chegaram então ao fim oito décadas de uma carreira de grandes feitos na Rua XV de Novembro, a praça cafeeira, uma ausência agora notada pelas novas gerações, muitas delas que aprenderam com ele o ofício.

A paixão pelo café nasceu mesmo na Hard Rand, uma empresa americana, onde começou a trabalhar como classificador. Saul aprendera a conhecer e separar os grãos por tipo. Ele recebia uma amostra de café e a classificava. Verificava se havia impurezas como pedras, torrava e degustava para conferir a qualidade.

Na Tristão, grande empresa de café, Saul se tornou o coffeeman – responsável por aprovar a bebida. “Se não aprovasse, não era embarcado”, conta ele. Saul montou o departamento responsável pelo grão. “Daquela molecada, hoje são todos diretores”. Muito experiente, também foi classificador da Bolsa de Mercadorias & Futuros (BM&F).

O café também levou Saul a viajar pelo Brasil. Para o exterior foram mais de 30 viagens. “Eu ficava visitando clientes”. Esteve seis vezes em Nova Iorque e quase dez na Europa, sendo quatro viagens à Suíça. Viveu lá por seis meses trabalhando para a Proex. Na Espanha, passou um mês. “Visitei todos os torrefadores depois que o Franco (ditador Francisco Franco, de 1939 a 1975) caiu e o mercado foi liberado”.

Seu último emprego antes de trabalhar por conta própria foi na Cooxupé, hoje a maior cooperativa de café do mundo instalada em Guaxupé, no Sul de Minas. Ele conta que fez a primeira exportação da Cooxupé, com 64 mil sacas. “No ano passado, eles exportaram mais de 1,5 milhão de sacas”.

Depois da Cooxupé, Saul resolveu se dedicar ao café por conta própria em Santos. Em 1998 montou a Sansen (iniciais de Santos e do nome dele). Um de seus orgulhos é ter introduzido o café de Patrocínio (MG) nos EUA.

Entretanto, a idade começou a pesar. Após o derrame, além dos problemas de audição, a locomoção ficou ruim e a visão piorou. A família, preocupada, cobrava a aposentadoria definitiva. Ele insistiu e passou os dois últimos anos trabalhando em casa. Finalmente, em novembro, decidiu que iria parar. A filha Andréa duvidou, após tantas promessas. “Parei de uma vez”, conclui a entrevista, com um sorriso de satisfação e dever cumprido.

# Em 80 anos, mercado quase irreconhecível

Para Saul Eliezer Neto, a melhor época do café começou nos anos 1950, com os bons tempos acabando de vez na geada de 1975, que dizimou o cultivo. Segundo ele, a praça santista vendia diretamente para o torrador e o importador no exterior.

O classificador lamenta que um grupo de dez multinacionais defina hoje os rumos do mercado brasileiro, lembrando que a mineira Cooxupé está entre os maiores e é muito forte.

Quem dá a rota do mercado é a Bolsa de Nova Iorque. Antes valia mais a regra do comércio pela oferta e procura do melhor preço. Agora é cotação de commodity (preço comum para matérias-primas agrícolas).

Luís Fernando, filho de Saul, diz que antes a cotação era semanal, agora é minuto a minuto.

De acordo com ele, grandes fundos americanos investem no café para diversificarem seus ativos e, por serem bilionários, influenciam as cotações.

Outra mudança recente no mercado, explica Saul, é a moda do café gourmet, de melhor qualidade para quem gosta de apreciar a bebida. “Estão se aperfeiçoando para obter um café de melhor qualidade”.

Para Saul, o melhor grão vem da Mogiana, especializada em cafés finos e que fica no nordeste do Estado, próximo a Franca e Mococa, na divisa com Minas Gerais, ao lado de Poços de Caldas.

# Nos anos 30, campeão juvenil pelo Santos

Não é só no café que Saul Eliezer Neto fez carreira. Boa parte de sua vida foi ocupada pelo futebol – das peladas na várzea à curta carreira no juvenil do Santos até os bastidores do clube, onde conviveu com Pelé e chegou à diretoria.

Na adolescência, Saul jogava no terreno que ia da Avenida Conselheiro Nébias até a Washington Luís. Ele e seus amigos foram campeões da várzea pelo El Tigre, até que Salustiano, o Salu, os convidou para o juvenil do Santos. Eles acabaram vencendo o campeonato estadual em 1936, que era uma disputa preliminar à principal.

Goleiro, Saul enfrentou a oposição do pai – na época o esporte não tinha as dimensões de hoje. Apesar de inúmeras vezes disputar jogos escondido, ele conta que naquela época os filhos acabavam aceitando a decisão do pai. E foi o que aconteceu.

Com a maturidade, começou a atuar nos bastidores do Santos. Após 1970, se tornou tesoureiro e, em 1978, foi vice de Rubens Quintas. “Hoje, só torço”, conta ele.

Saul tem orgulho do convívio com Pelé. “Ele falava com Pelé tête-a-tête”, lembra a filha Andréa. Na sala de seu apartamento está a mesa na qual segundo ele o jogador assinou seu último contrato com o Santos, em 1972.

Não só foram vizinhos na Avenida Washington Luiz como Saul cuidou algumas vezes do salário do atleta em viagem ou procurou escola e clube para os filhos. Em um dos últimos contatos, Saul diz que o encontrou em um restaurante no Rio de Janeiro. Na época, nos anos 1980, Pelé namorava a então modelo Xuxa. “O Pelé se levantou e nos cumprimentou”, conta ele, numa reverência ao Rei.

Família

Saul Eliezer Neto se casou duas vezes. A primeira em 1941, aos 22 anos, com Eliete. “Infelizmente, ela ficou 15 anos na cama e morreu aos 37 anos. Dessa união nasceram Flávia, que vive em São Paulo, e Marcelo, que mora em Apucarana (PR).

Em 1959, Saul se casou com sua atual esposa, Laila. Tiveram Luís Fernando e Andrea, que residem em Santos. Aos 94 anos, o agora ex-classificador de café tem nove netos e dez bisnetos.

Fonte: A Tribuna, 13/1/2013, domingo, página C-1

Confira a reprodução da reportagem

 

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