01 de agosto de 2013

O sabor de uma paixão - Beach & Co - 1.º/8/2013

Publicada em: Beach & Co - http://www.beachco.com.br/ - Agosto de 2013

# Olfato, visão, tato e paladar apurado são requisitos básicos para quem exerce uma antiga mas, até hoje, insubstituível, profissão: a de degustador de café, o responsável por atestar a qualidade e o sabor do nobre cafezinho

Por Luciana Sotelo

Ao longo das últimas décadas, a tecnologia aprimorou a rotina de trabalho da maioria dos profissionais, nas mais variadas áreas. Poucas profissões ficaram ilesas a tantas novidades do mundo globalizado. Um desses casos raros é o degustador de café, que tem como função identificar o sabor de um bom cafezinho e, para isso, não são necessários softwares avançados nem máquinas de última geração. Pelo contrário, as ferramentas são simples e continuam as mesmas de séculos atrás: os sentidos apurados. Além de conhecimento técnico, olfato, visão, tato e, principalmente, paladar, são fundamentais para avaliar a qualidade dos grãos que, mais tarde, vão gerar uma das bebidas mais consumidas no Brasil e no exterior.

Engana-se quem pensa que o profissional fica o dia inteiro saboreando café. Na verdade, durante o expediente, ele não bebe nada. A análise é muito mais complexa, explica Davi Antônio Pinto Teixeira, do alto de seus 70 anos de experiência. Aos 81 anos, acumula as funções de classificador, degustador e consultor de qualidade da bebida. “O degustador é o profissional mais importante do setor, é ele quem distingue o sabor e a qualidade do café, complementando a função do classificador. Ele tem que entender muito bem o gosto do consumidor”.

De acordo com a Associação Brasileira da Indústria do Café – Abic, algumas das principais classificações utilizadas na comercialização para caracterizar o grão são: mole (sabor suave e adocicado), duro (sabor acre, adstringente e áspero), riado (sabor leve, típico de iodofórmio) e rio (aroma e sabor acentuados, sendo repugnante ao paladar).

Davi conta que para fazer essa análise minuciosa, o ritual da degustação consiste em várias etapas. Primeiro, em cada xícara de prova  são colocados 140 ml de água a 90 graus e 10 gramas de café torrado e moído a uma granulação espessa, específica para degustação. “Misturados os ingredientes, após 20 segundos, o degustador entra em ação. Ele sente os gases que são aflorados pelo café. Assim, já consegue marcar o aroma, pois as qualidades e defeitos do grão são evidenciados”.

A última fase ocorre cinco minutos depois, com a degustação propriamente dita. Com o auxílio de uma colher especial, o profissional suga o líquido para sentir a acidez e o amargor. “É com o café sob a língua e o céu da boca que as papilas gustativas começam a funcionar. E para testar a doçura, é ideal que a bebida esteja mais fria”.

Para tamanha precisão, Davi garante que não é necessário ingerir nem uma gotinha, afinal, a média de provas é de 300 xícaras por dia, um volume nada saudável ao organismo. Para ser bom no ramo, alguns requisitos devem ser seguidos à risca para manter os órgãos dos sentidos em dia. Não é permitido ingerir bebida alcoólica, fumar e nem comer alimentos de gosto forte e marcante. Outra recomendação é não utilizar perfumes ou produtos de higiene com aromas que possam confundir na hora da avaliação.

O sacrifício compensa. De acordo com Davi, a remuneração mensal do profissional pode variar de R$3 a R$15 mil. As vagas são encontradas nas indústrias de torrefações, empresas de exportação, corretoras e cafeterias. “O mercado é estável, mesmo sem muitas perspectivas de crescimento”.

Outra dica importante do especialista: “Normalmente, o degustador é cria da empresa onde trabalha”. Foi justamente o que aconteceu com Davi. Aos dez anos, a necessidade de ajudar a família forçou um crescimento mais rápido. Seu pai era pedreiro, numa época de escassez, em plena Segunda Guerra Mundial. Como filho mais velho, foi trabalhar numa empresa de café, em Santos. Sua função era preparar as provas para os degustadores.

Aula de identificação de aromas, com acompanhamento do especialista Davi Teixeira. Ao centro, amostras de café e, na primeira foro, Nilton Ribeiro repassa ensinamentos sobre classificação dos grãos (Fotos Luciana Sotelo)

Ao despejar a água, os gases se rompiam e o cérebro do jovem fixava tudo, automaticamente. Não demorou para Davi perceber que conseguia identificar com facilidade o aroma de cada café. “Com saudade das brincadeiras de garoto, minha diversão era anotar num caderninho os adjetivos que me remetiam aos aromas que eu sentia”.

Um dia, um dos classificadores pegou as anotações do menino. Reconhecido pelo talento precoce, aos 13 anos, foi chamado para ser classificador. Essa foi apenas a primeira oportunidade na área. Alguns anos depois, um dos sócios saiu da empresa e abriu um novo negócio. Aos 17 anos, foi convidado a ser degustador do empreendimento.

Os anos lhe trouxeram experiência e segurança. Em 1953, Davi desenvolveu um café fino chamado Alpha, de blend 17/18. “Esse café é consumido até hoje. O gosto é cítrico com aroma floral”.

O simpático senhor foi ainda gerente de corretora e consultor de qualidade. Longe de pensar na aposentadoria, Davi segue firme como degustador e consultor de qualidade. Com a disposição de um menino, há dez anos, arrumou tempo para passar adiante um pouco do que aprendeu ao longo da carreira. Ele é um dos professores dos cursos de classificação e degustação de café da Associação Comercial de Santos – ACS.

Com brilho nos olhos, Davi diz que o segredo para ter tanta garra é o amor que dedica ao que faz. “O prazer me dá disposição. Fora isso, eu tomo meu cafezinho todos os dias, sem açúcar. A bebida tem poderes curativos comprovados.  Sou fã incondicional dos cafés da Alta Mogiana”, referindo-se a uma área agrícola paulista com terras de ótima qualidade.

O curso de classificação e degustação de café da ACS teve início em 1989 e, desde então, mais de 700 alunos já foram habilitados. A iniciativa é reconhecida pelos principais países consumidores. Segundo Ronaldo Taboada, 1º secretário da entidade, a capacitação foi idealizada para atender o mercado japonês, porém, já recebeu alunos de diversas nacionalidades, entre as quais, italianos, espanhóis, chineses, americanos, canadenses e dinamarqueses. “Sempre contratamos tradutor de acordo com o idioma”.

No mês de julho de cada ano, japoneses que atuam em empresas relacionadas à indústria do café vêm a Santos especialmente para o curso. Takeshi Tajiki aproveitou a chance, e fez parte da turma deste ano. Ele é colaborador da MC Coffee do Brasil, empresa que compra café verde do Brasil e, por vezes, exerce a função de degustador. “Vim para me aperfeiçoar. O Japão é um mercado exigente e aqui tem tradição e história. O intercâmbio é muito rico”.

Com duração de quatro semanas, as aulas se dividem em teóricas e práticas.  Em sala, são repassados conceitos como o da história do café, legislação, tecnologia e fiscalização. Já nos laboratórios, há a identificação de grãos, prova de bebida e desenvolvimento de blends (mistura de dois cafés, de lotes distintos que, posteriormente, dá origem a um terceiro lote). Nilton Ribeiro, assim como Davi, ministra aulas na ACS. Ele também tem conhecimento de sobra, afinal, são 53 anos de atuação como classificador e degustador. O professor conta que dois dos momentos mais esperados são as visitas técnicas. “Levamos os alunos a um armazém para que eles conheçam a operação portuária e também viajamos até uma fazenda de cultivo”.

Foi em busca da essência do produto que André Luiz de Siqueira se matriculou. Ele desenvolve projetos de sustentabilidade na área cafeeira. “Quero conhecer como tudo funciona para acrescentar esses detalhes nos futuros trabalhos. Estou gostando muito, aprendendo bastante”.

Nilton orienta os estudantes para outro ramo interessante de atuação como degustador, que é na arbitragem. “O café sempre é vendido atrelado a uma determinada qualidade. Porém, ao receber a mercadoria, o comprador avalia que a remessa não está conforme o escolhido. Neste caso, é feita uma arbitragem para saber quem está certo. Esse laudo com o parecer da encomenda é feito pelo degustador”, explica.

Ronaldo Taboada menciona que, quando o interesse é vinculado ao agronegócio café, a pessoa passa a ter uma visão mais ampla de como tudo funciona. Já quem não é do ramo, passa a entender melhor como o cafezinho chega à xícara e como é comercializado. “Ao final, após todas as avaliações, o aluno recebe a carteira de Classificador e Degustador de Café e um certificado de conclusão.”

Capacitação e segurança para atuar

O governo exige que o interessado em ingressar na profissão tenha nível técnico ou superior e, se quiser obter registro oficial da profissão, deve comprovar que é técnico agrícola ou engenheiro agrônomo e participar do curso técnico especializado, com 360 horas de treinamento, e, se possível, participar de estágio para se tornar confiante para exercer o ofício.

A profissão não é regulamentada pelo Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa), porém, o órgão tem cursos na área de classificação de grãos incluindo o café cru verde, reciclagem para classificadores e degustadores na área de torrado e moído.

Para o interessado saber se realmente tem aptidão para o setor e iniciar o conhecimento, algumas das opções são os Centros de Café de Minas Gerais, Espírito Santo e a Associação Comercial de Santos (ACS), que ministram cursos básicos.

Oportunidade

O curso de classificação e degustação de café da Associação Comercial de Santos geralmente acontece de dois em dois meses. Para este ano, estão programadas mais duas turmas, uma em setembro e outra em novembro. Para participar é preciso ser maior de 18 anos, diploma ou certificado de conclusão do ensino médio, atestado de sanidade bucal emitido por profissional habilitado, carteira de identidade ou passaporte. O valor para sócio da Associação Comercial de Santos é R$ 800,00 e, não sócio, R$ 1.500,00.


Confira a reprodução da reportagem

 

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